Congresso da Cerveja POA

O que faz uma boa cerveja? – Bia Amorim

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Nesta palestra inaugural do III Congresso da Cerveja de Porto Alegre, Bia Amorim nos guia em uma discussão sobre a “boa” cerveja. O que queremos dizer quando falamos que uma cerveja é boa?. Por que é importante uma cerveja ser boa? Quem ou o quê define se uma cerveja é boa (ou não)? Seria quem produz, quem julga ou quem consome? Isso depende dos ingredientes? Do contexto? Ou é só uma questão de opinião e pronto?

Em vez de respostas definitivas, Bia traz reflexões amadurecidas ao longo de muitos anos atuando no mercado cervejeiro, provocando cada um de nós a formarmos nosso próprio entendimento.

Então abra uma cerveja e a mente, e boa leitura!

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Bia Amorim é é sommelière, juíza de cervejas, organizadora de eventos, professora, guia etílica e publisher da Farofa Magazine.

O que é bom? Um pequeno pensamento filosófico

Antes de pensar sobre o que é uma cerveja boa, é preciso dar um passo atrás e refletir: o que é bom?

Esta é uma pergunta clássica da filosofia, mas não precisamos debater aqui as visões dos diferentes pensadores ao longo da história. O dicionário nos oferece uma definição mais clara e simples:

“bom [adjetivo]: que corresponde plenamente ao que é exigido, desejado ou esperado quanto à sua natureza, adequação, função, eficácia, funcionamento etc.(diz-se de ser ou coisa)”

É uma definição simples, porém o conceito é um tanto vago e subjetivo, não é? Todos nós queremos ser “bons”, boas pessoas, bons profissionais. Mas não necessariamente conseguimos definir o que isso significa. Ao julgar cervejas em um concurso, por exemplo, não podemos simplesmente escrever “boa espuma”, porque o cervejeiro que receber esta ficha poderá questionar “como é uma espuma boa? O que se quer dizer com isso?”. Então, para que a avaliação seja a mais clara possível, descrevemos as características objetivas de cada aspecto da cerveja, e damos uma pontuação conforme o guia de estilos usado. No contexto de um concurso de cervejas, é isso que determinará se uma cerveja é “boa” ou não.

Com isso começa a ficar claro que a definição de “bom” e “mau” (ou “ruim”) sempre depende de um referencial. Ainda no exemplo do concurso de cervejas, se o guia de estilos mudar, o referencial será outro, e com isso a definição de quais cervejas são “melhores” e “piores” também poderá ser diferente, mesmo que as próprias não tenham se alterado.

“Bom e mau são valores que não apresentam, para o ser humano, um caráter absoluto. Ao longo dos tempos, nas mais diversas civilizações, várias interpretações serão dadas a essas duas noções.”

O que é uma cerveja boa para uma pessoa que só quer uma cerveja gelada, leve e barata? Talvez seria uma cerveja que teria uma pontuação baixa se avaliada em um concurso, mas seria considerada excelente pelo público por cumprir estes requisitos.

Na primeira vez que eu tomei uma Sour, pensei: “nossa, que cerveja ruim”. Será que ela era mesmo ruim?

A questão é que a cerveja começou só existindo, uma tigela de cereais transformada pela água, calor e microorganismos então desconhecidos, e a partir daí foi sendo modificada com base no que se considerava bom em cada época. Não à toa, surgiu o código de Hamurabi, que punia quem produzisse cerveja “ruim”. Muito tempo depois disso vieram os monastérios onde as cervejas foram fortemente aprimoradas com o passar dos séculos , a Revolução Industrial com suas máquinas a vapor, termômetros e refrigeração, o desenvolvimento científico que trouxe a pasteurização e o estudo aprofundado sobre os ingredientes, e que perdura até os dias de hoje.

Resumindo, desde a sua origem a cerveja foi sendo aperfeiçoada conforme os referenciais de cada época, que também foram sendo atualizados. Mas o que seria essa perfeição?

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O que faz a perfeição?

Refletindo sobre o que faz a perfeição, me ocorreu um pensamento meio clichê, mas que me parece verdadeiro: a ocasião faz a perfeição.

Quais são as ocasiões? Abrir uma cerveja em um momento de comemoração, de felicidade, de romance, ou até mesmo algo mais singelo como curtir um pôr-do-sol lindo… a cerveja não fica ainda melhor? Não é perfeito?

Isso vale também para situações tristes. Às vezes passamos por dificuldades, perdemos o emprego, chove e alaga tudo, perdemos um ente querido. Nestes momentos, respiramos fundo e pensamos: “eu preciso de uma cerveja”. A cerveja pode acompanhar estes momentos difíceis e torná-los menos pesados, e neste sentido também torna-se perfeita para a ocasião.

Trazendo a reflexão para a produção de uma cerveja perfeita, eu questionei o pessoal do Instituto da Cerveja sobre isso, tentando trazer uma perspectiva um pouco mais prática e menos filosófica. Eles me responderam:

“Os estilos de cervejas estão em constante movimento, alterando suas características e parâmetros em função dos desejos, gostos do mercado, disponibilidade de matéria prima e também pressões econômicas.” — Instituto da Cerveja Brasil

Então quando pensamos sobre como fazer uma boa cerveja, não podemos deixar de pensar no contexto atual. Neste momento, como o país está economicamente? Como as pessoas estão psicologicamente? Como as pessoas estão sensorialmente? O que mais está disponível? Talvez uma cerveja de 50 anos atrás não faça tanto sentido hoje em dia. Da mesma forma, será que uma cerveja atual uma New England IPA, digamos faria sentido 100 anos atrás? Será que ela seria perfeita naquela época, como parece ser hoje em dia?

Ou seja, as questões contemporâneas determinam a percepção do que é uma cerveja perfeita. Antes de moer os maltes e esquentar as panelas, é preciso antes pensar aonde se quer chegar; depois, o que se deve fazer para chegar lá; depois, qual o investimento necessário de tempo, dinheiro e fé; e por fim, talvez a pergunta mais difícil: qual é o propósito de se fazer tudo isso?

Nada é construído do nada. É preciso colocar tijolinho por tijolinho, brassagem por brassagem, com propósito. Se você não for feliz neste caminho, sem propósito, o resultado não tem como ser perfeito.

Seguindo este raciocínio, podemos dizer: a intenção faz a perfeição.

Bom para quem?

A mesma cerveja pode ser rejeitada por uma pessoa, e emocionar outra. Cada um de nós tem um paladar, uma bagagem de referências sensoriais, preferências íntimas e únicas a nós.

Queremos emocionar as pessoas com um produto de excelência. Mas quem são essas pessoas? São diferentes paladares, diferentes culturas, diferentes tradições, diferentes emoções, diferentes valores… e tudo isso deve ser considerado. Se não, você vai fazer a cerveja que você gosta, e vai vender para você e para os seus amigos, que são, praticamente, o seu clone.

Para fazer uma cerveja boa, precisamos nos perguntar para quem estamos produzindo. Ela é perfeita para o mundo inteiro, ou só para os profissionais? Adianta uma cerveja ganhar a pontuação máxima em um concurso, ser perfeita para quem (supostamente) sabe o que seria a perfeição… mas ninguém querer comprá-la?

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Pensamento sommelier: Teoria dos Elementos Completos

Uma cerveja boa invariavelmente será feita com bons ingredientes, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira: é totalmente possível fazer uma cerveja ruim com bons ingredientes. E já vimos que a percepção de uma cerveja ser boa ou não também depende do entorno. Pensando no momento do consumo, juntando cerveja e comida, a combinação pode ser perfeita ou desastrosa, dependendo das escolhas feitas. Então, partindo do princípio de que tudo que envolve a cerveja influenciará na percepção da sua qualidade, reuni as condições em algo que batizei de Teoria dos Elementos Completos.

Matéria-prima: não basta usar a melhor água, o melhor malte, o melhor lúpulo e a melhor levedura, se não tiver técnica, cuidado, boas práticas. Mas SIM, bons ingredientes e equipamentos fazem produtos melhores.

Logística e armazenamento: o cuidado com o manuseio, a temperatura durante a jornada da fábrica ao consumidor, o tempo de exposição e o tempo de estocagem, o local e a posição correta de armazenagem. Tudo isso faz uma grande diferença para que a cerveja que foi produzida com os melhores ingredientes e saiu perfeita da fábrica, continue perfeita.

Serviço de mesa: este é o momento em que a cerveja será efetivamente apreciada, e suas condições podem elevar ou destruir a experiência. Um serviço de mesa bem feito, copo limpo, atendimento gentil e temperatura correta, podem fazer toda a diferença na percepção da cerveja. Você pode ter uma baita cerveja, que foi transportada e armazenada com todo cuidado, mas se ela for servida quente e em um copo sujo… já era.

Ambiente: já vimos que o contexto, a ocasião, influencia e muito na percepção da cerveja. Mas não é só isso. A temperatura do local, a iluminação, o som ambiente, as pessoas à sua volta, tudo isso também faz diferença.

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Pensamento cervejaria: defeitos e autocrítica

Em tudo que fazemos, se não houver autocrítica, não vamos melhorar e nada será perfeito. Com a cerveja é a mesma coisa.

Às vezes eu bebo uma cerveja e penso “cara, será que essa pessoa não tomou a própria cerveja? Porque ela não fez uma autocrítica?”. Existem muitos defeitos que podem aparecer nas cervejas, alguns decorrentes de problemas com os insumos, outros por falhas no processo, outros por armazenamento ou serviço descuidado. Mas é importante sempre manter um senso crítico sobre o que se produz. E se quem produz não tem o conhecimento necessário para avaliar, é preciso buscar os meios de obtê-lo.

A propósito, os concursos não existem apenas pelas medalhas, mas sim pelo feedback qualificado que se recebe. Se houverem falhas na sua amostra, tudo bem, nem sempre conseguimos acertar em tudo. Aí você volta, ajusta a receita, faz outro lote. Seguindo esta prática, talvez o seu próximo lote não seja perfeito, mas será cada vez mais próximo disso.

O Ray Daniels, autor do livro Designing Great Beers, dá algumas dicas sobre como aperfeiçoar uma cerveja, que eu considero bastante pertinentes:

  • Execute bem as tarefas
  • Repita as ações bem feitas
  • Crie novas receitas
  • Ouça os feedbacks
  • Prove outras cervejas
  • Leia a respeito
  • Tente replicar uma receita incrível
  • Faça fórmulas
  • Aprenda mais sobre questões críticas
  • Seja criativo

O que faz uma boa cerveja, na opinião de quem faz

DANIEL NAVARRO: “Cerveja perfeita não é um produto. É uma experiência.”

CARLOS ARTHUR: “É aquela que agrada o seu paladar, não importando o estilo.”

NICOLÁS MEGA: “Acho que é aquela cerveja que me dá grande satisfação ao bebê-la, e que não contém defeitos aparentes.”

LEO SEWALD: “É aquela que te dá uma sensação de completude, de conforto e de carinho. É aquela que é EXATAMENTE O QUE VOCÊ ESTAVA PROCURANDO.”

Um pensamento final sobre a “boa cerveja”

Resumindo de forma bastante limitada, uma boa cerveja é feita a partir da harmonia entre vários fatores.

Há um velho ditado alemão que diz: “a melhor cerveja é aquela que você bebe vendo a chaminé da fábrica”. Pode até fazer sentido, se o seu parâmetro principal de qualidade for o frescor. Mas essa questão do alcance vai muito além da proximidade física. E quanto ao alcance financeiro? O porteiro do prédio, a empregada doméstica, a grande maioria da população brasileira que ganha um salário mínimo (ou até menos), nunca vão tomar uma cerveja boa só porque a cerveja perfeita supostamente custa muito caro?

Então quando eu digo que uma cerveja é boa, eu não estou me referindo apenas a uma cerveja premiada ou cara. São inúmeros os fatores envolvidos. Destaquei alguns deles abaixo, e poderíamos imaginar muitos outros.

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No fim, o que eu gostaria que vocês carregassem consigo sobre o que faz uma boa cerveja é este repertório inicial para tirar suas próprias conclusões. É um assunto complexo e subjetivo, e não há uma resposta definitiva que vale para todos. Você terá que encontrar a sua.

Obrigada!

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